Executivo e jornalistas “tomam café” com população sem-abrigo
"Alexander King diria que “a necessidade básica do coração humano durante uma grande crise é uma boa chávena de café quente”. Eu acrescentaria à chávena de café quente, uma boa conversa, um olhar atento. Sem preconceitos, sem juízos de valor."
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Paragem na Caixa Geral de Depósitos - Rua da Sofia (Baixa de Coimbra) |
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"Casa" improvisada na Cave das Químicas |
A noite da passada quarta-feira, dia 4 de Maio, foi diferente para alguns dos sem-abrigo de Coimbra. Não é que não estejam já habituados à “ronda” semanal da Equipa Móvel de Intervenção Social (EMIS), que sai à rua apoiada pelos Bombeiros Sapadores da cidade. O que não esperavam é que esta fosse assistida por tanta gente. É que, desta feita, o usual “giro” nocturno – normalmente perpetrado por uma média de três voluntários – foi acompanhado pelo executivo da Câmara Municipal de Coimbra (CMC) e por vários jornalistas, dando a estas pessoas uma sensação de visibilidade à qual não estão acostumadas.
Enquanto uns se aprontaram a esconder, intimidados com as máquinas fotográficas e outros apetrechos jornalísticos, contrariamente outros prontificaram-se a partilhar as suas histórias e a manifestar as suas revoltas. Alguns até pousaram para as câmaras entusiasmados com uma possível aparição no jornal.
No decorrer do périplo pelos recantos da cidade que uns desconhecem e outros desprezam (Químicas; Hospital Velho; Centro Comercial Avenida; CGD; Tivoli; Fernão de Magalhães; Casa do Sal; Praça do Comércio; Rua Adelino Veiga e Parque da Cidade), encontrámos um professor de música, um pedreiro escritor, um estudante, uma professora de filosofia, um ‘manicure’ com o sonho de animar discotecas, entre outros ofícios que parecem de nada lhes valer no que toca a reintegrá-los na sociedade.
A solidão e a ausência de afectos são os estados de alma que mais pairam nas ruas e que os leva a cair em profunda depressão, a deixar de ter esperança no futuro e, sobretudo, a confiar – quer neles próprios, ou na sociedade que os colocou à margem. Estão na rua pelas mais variadas razões. Problemas de saúde, rupturas familiares, desemprego e adições (álcool ou drogas) são os motivos mais comuns.
Voluntários procuram proximidade com população carenciada
Pedro Machado diz ser difícil “traçar um perfil [de sem-abrigo] ”. Este voluntário não acredita que exista uma “Nova Pobreza” advinda da actual crise financeira. “Os problemas de forma geral mantêm-se iguais, podendo estar um pouco mais agudizados com a crise”, afirma.
Cândido Lopes é um dos mais antigos voluntários da EMIS, estando integrado no projecto desde a sua criação, em 2004. É muito popular entre os sem-abrigo, que o recebem com grande afeição. Carinhosamente tratado por “Cândido”, conhece a fundo os casos mais problemáticos, sendo, para estas pessoas, o “amigo” mais esperado. Este “amigo dos desfavorecidos” confidenciou que há “um número considerável de sem-abrigo em Coimbra”, sendo que “nem todos aparecem com vergonha de assumir”.
Para os dois voluntários, o objectivo da EMIS é essencialmente “conversar um bocadinho” e manter uma proximidade com esta população carenciada, de forma a melhor entender as suas reais necessidades. Para tal, os voluntários nunca se esquecem do tão apreciado café de cevada que os aconchega e lhes desperta a vontade de conversar.
O "café do conforto"
À medida que fomos “descobrindo” os habitantes ocultos da cidade, foi-se criando a tal atmosfera de proximidade e afinidade. A certa altura, deixámos de ser meros "estrangeiros" no seu mundo e o ambiente tornou-se familiar. Foi como tomar um café com os amigos: ouvimos os seus desabafos, as suas peculiaridades, as suas vivências; convivemos e conversamos, entre iguais. Feitos da mesma substância. Até que
percebemos que o que lhes aconteceu – os motivos que os conduziram àquela condição – pode acontecer a qualquer um de nós, a qualquer altura das nossas vidas ténues! Envolvidos no aroma do “café do conforto”, assim baptizado por um voluntário, reflectimos e chegamos à conclusão que, caso a nossa vida se corrompesse ao ponto de ficarmos a sós com as calçadas, o mínimo que desejaríamos era que olhassem para nós, com olhos de ver, e nos dessem uma palavra amiga.
Alexander King diria que “a necessidade básica do coração humano durante uma grande crise é uma boa chávena de café quente”. Eu acrescentaria à chávena de café quente, uma boa conversa, um olhar atento. Sem preconceitos, sem juízos de valor.
Da conversa à acção
«Ninguém está perdido, desde que se queira encontrar consigo próprio»
Com os pelouros da Acção Social e Família, desde o ano passado, Maria João Castelo Branco teve um papel bastante activo durante a visita aos sem-abrigo. O diálogo e o aconselhamento à população em causa estiveram presentes na sua atitude ao longo de toda a “ronda”. De acordo com a vereadora da Câmara Municipal de Coimbra (CMC), não é suficiente dar aos necessitados “aquilo que no imediato precisam”. O essencial é construir-lhes um projecto de vida, encaminhando-os social e profissionalmente, prestar-lhes cuidados de saúde e, sobretudo, “saber se têm esse desejo”.
Maria João Castelo Branco diz ser fundamental que haja “adesão ao projecto de vida”. E explica que há casos em que “as pessoas têm dúvidas se querem integrar-se novamente na comunidade”, acrescentando, ainda, que “sem uma adesão espontânea não se consegue nada”. Para tal, afirma ser “preciso criar esta relação de confiança durante dias, semanas, meses, anos para tentar cultivar nestas pessoas a esperança de que ninguém está perdido, desde que se queira encontrar consigo próprio”, para depois reencontrar-se com a comunidade em geral.
Nesse sentido, a vereadora não deixa de louvar o trabalho daqueles que “se voluntariam de corpo, coração e alma, através do Banco de Voluntariado da autarquia” e que se “solidarizam com os técnicos da CMC para no verdadeiro sentido da cidadania tentar incluir estas pessoas”. Aqueles que, semanalmente, efectuam este trabalho “têm o diagnóstico feito, conhecem as pessoas, conversam com elas e apagam-lhes um bocadinho daquela solidão”, ressalta. Quanto à recorrência deste acompanhamento por parte do executivo, Maria João Castelo Branco adianta: “Tem que se repetir. Da minha parte tenho que voltar muitas vezes. As que forem precisas”.
EMIS actua desde 2004
É no sentido de criar laços de confiança e de promover a inclusão que a Equipa Móvel (EMIS) anda pelas ruas de Coimbra, todas as quartas-feiras à noite, desde 2004. Existem determinados pontos onde “as pessoas já esperam a equipa”, mas a sua função é também “verificar qual é a rua ou qual é o canto da cidade onde está alguém que se sente desprotegido ou que está em situação de carência”. A ideia é que os técnicos cheguem ao final da noite e sejam capazes de, no dia seguinte, “reportar tudo o que viram” e fazer um “estudo de caso”. O projecto da Divisão de Acção Social da CMC, integrado no PNAI - Plano Nacional de Acção para a Inclusão, conta com a parceria da Segurança Social e, ainda, com diversas instituições de solidariedade social que, rotativamente, “de segunda a sexta-feira fazem o acompanhamento destas pessoas” - Segurança Social; Cáritas; Integrar; AMI; Cozinhas Económicas; Casa Abrigo Padre Américo; Centro João Paulo II; Associação Nacional de Apoio a Jovens e Ordem Terceira de S. Francisco.
Coimbra tem 200 sem-abrigo referenciados
O director do Departamento da Acção Social da autarquia fala em cerca de 200 casos de sem-abrigo referenciados, embora esta seja uma população flutuante. “Há momentos do ano em que temos mais casos e outros menos”, esclarece. João Gaspar diz não existir “um estudo estatístico concreto [de reintegração], mas as histórias de vida dizem-nos que temos casos de sucesso”. No entanto, esta população é “muito difícil de ressocializar”, admite. O responsável acrescenta que “a sociedade civil pode dar uma resposta, mas eles próprios [sem-abrigo] também terão de estar abertos a essa resposta”. O dirigente coloca toda a sua convicção na “equipa de quarta-feira” que está “permanentemente em cima das situações” e na estreita relação com as outras instituições parceiras da Câmara, que interagem entre si. Durante o “giro” surgiu um novo caso, ao que João Gaspar garantiu: “Amanhã [quinta-feira] já saberão que um indivíduo foi identificado e será referenciado.
A voz de quem vive a solidão e a nostalgia das “ruas da amargura”
Marcelo, de 60 anos, diz que o que mais o atormenta é a solidão. Por isso, prefere viver numa “casa” improvisada que partilha com os seus “camaradas” do que pagar um quarto. “Tenho aqui os meus amigos”, sublinha o amante de cinema e de letras. E justifica com um ditado: “Vale mais um grande amigo que um grande amor”. O seu companheiro de “lar” chama-se Hernâni, tem 52 anos e, pelas suas contas, vive ali há dois, três anos. Pedreiro de profissão, a epilepsia levou-o a deixar de trabalhar na sua “arte”. Parece antagónico que um homem que levou a vida a construir telhados para os outros, não tenha um tecto seu. “Sou demasiado novo para estar reformado e demasiado velho para trabalhar”, desabafa. E conta que há pouco tempo perdeu um emprego por estar a viver na rua. “Fui honesto com a empresa. Disse-lhes qual era a minha situação, mas não houve hipótese porque não tinham alojamento”, explica. Este pedreiro que já escreveu um livro, curiosamente, intitulado “Ventos de mudança, ventos de tolerância”, admite querer mudar de vida. “Eu mais do que ninguém sei que não quero isto. A força que eu quero ganhar para sair disto é para poder exercer de novo a minha arte”, garante. Hernâni confessa que se tem mantido ali “para curar muitas coisas que tinha na cabeça” e que enquanto ali está vai “arrumando o sótão”. Apesar de concordar que a sua precariedade já se prolonga há demasiado tempo, confirma que acaba por se criar um “modo de vida” e que há quem volte “movido pela nostalgia”. A receber o Rendimento Social de Inserção já ponderou a hipótese de ir para um quarto, embora não lhe agrade a ideia de andar “o resto do mês com 50 euros no bolso”.
Muitas histórias idênticas, as mais variadas razões, vidas que caminham à deriva num limbo de incertezas e que dormem sob o abismo, em qualquer canto que os acolha mais do que a própria existência. Esta é a realidade! Basta que estejamos atentos, que ponhamos o egocentrismo à parte, que nos coloquemos do lado de lá e que façamos algo. E pode começar por um sorriso, uma palavra de alento ou, simplesmente, saber ouvir!